João Mendes Ribeiro fez a sua primeira obra de arquitectura industrial para receber uma empresa de componentes de automóveis, mas o proprietário decidiu ocupá-la com Chafes e Boltanski, Julião Sarmento e Andy Warhol, Baldessari e Molder. Provisoriamente.
No átrio da mais recente obra de arquitectura de João Mendes
Ribeiro, em Coimbra, estão três peças da dupla João Maria Gusmão e Pedro Paiva.
São três esculturas em bronze que ocupam toda a área do lobby que
é limitada, na vertical, por grandes montras em caixilho de contraplacado de
bétula – divisórias quase transparentes que criam salas de diversas dimensões
sem quebrar a sensação de open space.
Uma daquelas divisões foi completamente escurecida para
receber o filmeWheels 16 mm dos mesmos autores (2011), e funciona
como uma das portas de entrada para a exposição de arte contemporânea Primeira
Pessoa Plural. Será assim até ao fim do dia 10 de Maio, um domingo. Depois,
aquela e outras obras de arte serão encaixotadas para dar lugar ao pessoal
administrativo de uma convencional empresa de componentes de pintura de
automóveis.
Artista(s): Adelina Lopes, André Cepeda, Ana Vieira, Helena
Almeida, Pedro Barateiro, Nan Goldin, entre outros A Contemporary Art Collection, Coimbra. Até 10/5. 6ª, Sáb e Dom das 11h às
18h.
É, literalmente, isto – ali, onde está a peça Race
and gelatin montain, de João Maria Gusmão e Pedro Paiva (2013),
instalar-se-ão, em meados do mês o contabilista, a recepcionista e outro
pessoal administrativo. No piso térreo, apagar-se-á a imagem encantatória da
projecção, através de uma secção de ágata, da sombra de um elemento de vidro
suspenso, que se move de uma forma quase imperceptível, criando o Inferno (2013)
de Francisco Tropa. Terá de ser. Porque ali é a área comercial da empresa.
No outro extremo do edifício, o imenso armazém onde o
curador Delfim Sardo criou uma linha de sentido entre obras de autores tão
diversos como Rui Chafes, Christian Boltanski, Julião Sarmento, Diogo Pimentão,
Andy Warhol, John Baldessari, Matt Mullican, Thomas Ruff, Cabrita Reis, Jorge
Molder, Helena Almeida, Michelangelo Pistoletto, José Pedro Croft e Fernando
Calhau (entre outros) passará a ser um armazém. "Ou seja, aquilo que
realmente é", comenta João Mendes Ribeiro, com um sorriso.
No início do mês, o arquitecto estava nos Açores, a abrir o
Arquipélago, o centro de artes contemporâneas da Ribeira Grande, desenhado com
Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes. No sábado passado assistiu à
inauguração da sua primeira obra de arquitectura industrial, que concebeu com
Catarina Fortuna e Joana Brandão. E, simultaneamente, à abertura da exposição
da colecção particular de arte contemporânea AA, de António Albertino e Ana
Cristina, que durante três semanas coloniza aquele espaço, construído na
Adémia, uma zona “desregrada”, “descosida”, nos subúrbios da cidade de Coimbra.
Ali, onde estradas e caminhos se cruzam com uma estação de
venda de combustíveis e pavilhões comerciais convivem com casas habitação mais
ou menos degradadas, o arquitecto quis “deixar uma imagem forte” e “formatadora
do espaço público”.
O efeito foi conseguido com a construção de dois volumes de
diferentes escalas, ligados por um passadiço coberto, sobreelevado em relação à
rua. Os dois edifícios são percorridos por uma linha horizontal em que o betão
se transforma na chapa metálica e ondulada cinzenta escura que reveste todas as
superfícies superiores, incluindo as aberturas e as coberturas. Nas janelas e
no passadiço entre os dois edifícios, a transparência é conferida pela mesma
chapa, perfurada.
Obras de Diogo Pimentão,
Ângelo de Sousa e Fernando Calhau NELSON
GARRIDO
“Claro que não me passou pela cabeça que isto fosse usado
como espaço museológico”, comenta o arquitecto. Está já no interior do armazém,
que foi construído em cinco módulos, com coberturas de duas águas. E olha para
cima, onde clarabóias, abertas a norte, atravessam horizontalmente a cobertura,
cruzando-se com as fiadas de iluminação artificial que se estendem verticalmente
de uma ponta à outra da nave. “Mas, curiosamente, a luz resulta – é uma luz
crua, fluorescente, difusa no espaço. Além disso, a arte contemporânea funciona
muito bem com o grande espaço minimal”, continua.
É um daqueles encontros improváveis. O edifício foi
construído porque António Albertino, o proprietário, precisava de novas
instalações para as suas empresas; foi desenhado por Mendes Ribeiro porque o
gestor é “amigo e admirador há décadas” do arquitecto; e a mostra de arte
contemporânea surgiu de uma evidência do proprietário: “O espaço ficou tão bom
que eu pensei: por que não?”. Uma pitada de loucura e “uma enorme
generosidade”, nas palavras de Delfim Sardo, levaram António Albertino a
avançar para a segunda de duas (mais que) efémeras mostras de parte das obras
que o casal colecciona desde 1992.
A primeira exposição foi há três anos, quando ele festejou
os 60 de idade e decidiu pedir emprestadas as ruínas de uma fábrica de
porcelanas de Coimbra por apenas um fim-de-semana. Desta vez, oferece um pouco
mais de tempo: o edifício de João Mendes Ribeiro estará aberto ao público das
11h às 18h entre sexta e domingo e, daqui a uma semana, nos dias 8, 9 e 10. A
entrada é livre. “Claro”.
“Por que não se prolonga até ao fim do mês?”, pergunta
alguém, intrigado, no frenesim da fase final de montagem da exposição. E
António Albertino rápido, estupefacto, quase impaciente: “Porque as empresas
têm de se instalar. Temos de trabalhar, ora essa!”.
Está a afastar do ouvido um telemóvel obsoleto que não pára
de tocar. A três dias da inauguração há obras encaixotadas, funcionários que
pedem decisões urgentes por causa das empresas ou do edifício ou da mostra, que
o gestor vai despachando enquanto entra e sai do futuro armazém, agora quase
transformado num espaço de exposição.
“Box in the box”, diz João Mendes Ribeiro sobre o
plano que concebeu com o curador, Delfim Sardo, para ultrapassar o
primeiríssimo obstáculo, que foi “a falta de paredes” onde colocar as obras num
armazém que, afinal, continua a estar destinado a componentes de reparação e
pintura de automóveis.
A caixa maior é o edifício, “o contentor”, com as paredes
cruas, em betão, aqui e ali cortadas pelas tubagens, pelo quadro eléctrico,
pelos fios e tomadas, que provam que até a organização daqueles materiais
correntes “pode ter desenho”. Dentro do armazém, contida, está agora uma
estrutura provisória, construída para a exposição, que não toca nas paredes do
edifício.
São paredes inteiriças, com a altura de três metros de
altura, que se auto-sustentam, forradas a branco na frente, ligadas de maneira
a criar três salas que acompanham a estrutura modular do edifício. Ao
arquitecto seduz o verso das paredes, uma estrutura de barrotes de madeira
entrelaçados, cosidos de forma elementar, com agrafos, e que se aproximam da
crueza do betão, reforçando a imagem de armazém daquele espaço, que é a que
restará quando a exposição acabar.
Um Sopro, 1998–2001. Rui Chafes.
Edifício de João
Mendes Ribeiro NELSON GARRIDO
António Albertino percorre o espaço interior da estrutura
móvel. Mesmo de telemóvel colado ao ouvido pára aqui e ali. Emociona-se quando
contempla um acrílico sobre tela de Ângelo de Sousa, a primeira peça que ele e
Ana Cristina compraram. Têm-na no apartamento onde vivem. “Há obras que
resistem. Passados 25 anos continuamos a gostar de conviver com elas. Outras
vão rodando, por uma ou outra razão, às vezes porque simplesmente em casa não
há luz suficiente”. Dá mais uns passos, e indica: “Este Fernando Calhau, por
exemplo, repara nas nuances do preto”. Aproxima o rosto da tela. “Uma casa… Por
mais que se faça uma casa nunca tem esta luz”.
Outra das obras que tem no seu apartamento é a de Andy
Warhol, que, avisa, “não é nada do que se espera ver quando se diz Andy
Warhol". Está já em frente do esquisso, grafite sobre papel, com o título Male
nude (1983). Adquiriu-o numa galeria, em Espanha. Diz que apesar de
visitar feiras de arte, compra a maior parte das obras em galerias. E
acrescenta que algumas só fazem parte da sua colecção porque, ao longo dos
últimos 25 anos (“se calhar um bocado por causa das nossas personalidades”,
comenta), o casal foi estreitando laços com artistas e galeristas, que já
cederam obras “a preço simbólico ou a título gratuito”.
Delfim Sardo, que conhece António Albertino e Ana Cristina
“há muitos anos” diz que “é rigorosamente assim”. Em relação à arte e à
capacidade de mobilizar os outros. O convite para a exposição foi oferecido
pelo premiado designer João Bicker, da FBA. Os arquitectos continuam a
trabalhar, depois de a obra estar entregue, para que a inauguração aconteça. O
curador levantou-se às 6h para mais um dia de trabalho pro bono e
já passava das 15h quando, acompanhado de António Albertino, engoliu uma sandes
à pressa, em jeito de almoço.
O edifício foi construído porque António Albertino, o
proprietário, precisava de instalações para as suas empresas; foi desenhado por
Mendes Ribeiro porque o gestor é “admirador” do arquitecto
“É um pouco excêntrico, uma pessoa apaixonada. Compra porque
gosta e por isso a colecção é muito diversa, flutua ao ritmo de um gosto que
evolui e se modifica ao longo dos anos e em que o ponto comum, o que não se
apaga, é precisamente o fascínio que ele tem por determinadas obras”, diz
Delfim Sardo. Dirá, mais tarde, que apesar de terem origens muito diversas,
algumas das que escolheu expor fazem parte da sua “shortist mais
restrita”.
O curador já “fechou” a sala onde o dorso de Lisa
Lyon (1982), de Robert Mapplethorpe, se cruza com as Cinzas de
Pasolini II ( 2004), de Rui Chafes, e o Male nude de
Warhol. “Ouves?!”, pergunta António Albertino, com um sorriso. Não muito longe
está a caixa com as balas de chumbo que hão-de formar Seeds IV (1993),
de Antony Gormley, e a fase de montagen está longe de estar terminada. Mas já
ecoa algures, no imenso armazém, o som de um avião, que nasce numa escultura de
Rui Toscano (From Point A To Point B, 2009) – “Ouves?”
A António agrada “a poética da viagem” sugerida pelo som;
Delfim Sardo ainda procura o lugar da peça. Constroem um sentido que concilia
os olhares do curador e dos coleccionadores e que, assentam no final, começará
por sugerir " uma tónica de memória, que se converte num tópico sobre o
peso e a gravitação, que conduz ao corpo e daí à linguagem e à aquitectura".
Quem começar a visita pelo armazém será recebido pel’ O
Beijo da Sereia(2011) de Rui Chafes. Se for até dia 10 de Maio, claro. Na
semana seguinte será apagada a memória da exposição, que existe para isso
mesmo, para não deixar rasto. Ali, onde estão O Azul do Céu a G.B. (2000)
de Jorge Molder eLa Fête de Pourim de Christian Boltanski (1988),
ficarão latas de tinta, solventes, resinas e outros componentes para reparação
automóvel.