A disciplina do artista | M10

O trabalho de Pires Vieira é sempre de disciplina, de contenção, de austeridade, interrogando uma e outra vez os limites da pintura
A propósito dos 45 anos de prática artista de Pires Vieira, o Museu do Chiado e a Fundação Carmona e Costa organizam uma grande exposição antológica da sua obra. Nascido em 1950, exilou-se em Paris até 1974, tendo depois regressado a Portugal. Nunca pertenceu a grupos, mesmo informais, e esse facto tem-no mantido arredado dos palcos do chamado meio da arte portuguesa contemporânea. Contudo, uma abordagem esquemática ao seu currículo confirma a atenção que o mesmo meio lhe prestou sem falhas desde o início. Expôs onde devia expor, participou no que era importante participar. No Museu do Chiado, é possível agora fazer uma ideia precisa da coerência de uma obra que se desenvolve sem saltos conceptuais nem estilísticos até hoje, e que justifica amplamente a exigência do percurso expositivo de que falámos.
Adelaide Ginga é curadora da exposição nos dois locais e assina um excelente ensaio sobre a obra do artista, publicado no catálogo. Aqui, um conjunto de influências adoptadas a partir dos começos de Pires Vieira: o grupo francês Support-Surface, que acompanhava os preceitos minimalistas norte-americanos com características próprias, mas também um vasto leque de artistas, de Matisse a Rothko, de Malevitch a Ad Reinhardt. Pires Vieira não copia nem segue cegamente nenhum deles, antes capta das respectivas obras aquilo de que necessita para construir o seu próprio trabalho. E este é sempre, sistematicamente, um trabalho de disciplina, de contenção, de austeridade, interrogando-se uma e outra vez sobre os limites da pintura, as fronteiras com a escultura e a instalação, o papel da cor, a submissão desta última à forma... tudo isto, e simultaneamente o seu contrário. Estas interrogações condensam-se, por fim, numa única pergunta: a que interroga a pintura para saber o que ela é.
A curadora menciona, no seu ensaio, que em Pires Vieira o tempo está sempre sujeito ao pensamento; e que é por isso que as mesmas formas, as mesmas questões regressam, quer se considerem as peças dos anos 70, como as dos 80, dos 90 ou mesmo da actualidade. Há uma declinação de formas a negro sobre fundo claro que, por exemplo, encontramos vezes sem conta. Nunca são as mesmas, embora apresentem entre si um ar de família que nos permite agrupá-las numa série contínua, diacrónica. Na exposição, é possível ver como estas formas possuirão talvez a sua origem conceptual no Quadrado Negro sobre Fundo Branco de Malevitch, assim como um outro motivo, este cruciforme, nos recordará certa série de Ad Reinhardt. 
As obras que introduzem a montagem, no átrio do museu, apresentam-se simultaneamente como hipótese e síntese de toda a selecção. Narrativas, de 2003, é formada por um suporte rectangular disposto no chão, sobre o qual quatro megafones vão sussurando dois textos distintos. Num, as 12 prescrições para o pintor de Ad Reinhardt; no outro, um texto de Grinberg sobre o conceito de “culpa persecutória”. A aparente relação de causa e efeito entre os dois textos cria um espaço mental no qual toda a obra do pintor se desenvolve. Porque, para além destas considerações, há o rectângulo da pintura, a ausência de cor, a hibridez entre pintura e escultura, a grelha, enfim, que é suporte de todo o significado. Três portas de cores lisas — vermelho, azul e negro — desenvolvem logo de seguida estas questões. Abrem, mas pouco nos deixam entrever o que se passa entre elas e a parede. Estão penduradas como quadros, e contudo não se trata exactamente de pintura; desenvolvem a antiga comparação renascentista, que afirmava que a pintura era como uma janela aberta para o mundo. Dão-se a ver na indefinição, e contudo afirmam-se peremptoriamente como objectos bem definidos.
Na mezzanine e na Sala dos Fornos compreendemos melhor como Pires Vieira concebe estes projectos. Boa parte das peças apresentam-se como declinações de uma ideia até à sua demonstração. O reflexo e a opacidade, o gesto e a cor lisa, a grelha e o seu suporte (numa série de trabalhos de 74, em que cordas extravasam o espaço da tela para se espalharem pelo chão), a mensagem escrita e a sua ausência e, mesmo e mais uma vez, o rectângulo da pintura e o seu desaparecimento mostram-se sucintamente, como resultado de um processo que prima pela contenção, sem nunca se afastar dessa hipótese inicial que mencionámos acima.

Podemos constituir, como sempre sucede, uma família artística em Portugal para a obra de Pires Vieira. Penso imediatamente em Fernando Calhau, quase seu contemporâneo, ou no Julião Sarmento dos anos 70. Mas o que interessa aqui nem será essencialmente isso. Para além das coincidências epocais, ressalvaremos sobretudo o modo como o núcleo essencial das questões abordadas por este artista mantém toda a sua vitalidade.