Pintada há mais de 500 anos na oficina do mestre de daVinci, Andrea del Verrocchio |
É uma Virgem delicada que nos apresenta o seu Menino
transformado em escultura no parapeito de uma janela imperfeita. Terá sido
pintada há mais de 500 anos por Andrea del Verrocchio, mestre de Leonardo da
Vinci e de Sandro Botticelli, e pela sua oficina. Virgem com o Menino é a nova
proposta do programa Obra Convidada do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em
Lisboa, e estará em exposição até 18 de Maio, ao lado de uma outra Virgem
quinhentista que pertenceu ao rei D. Luís e que acaba de ser restaurada.
A primeira é belíssima e tem um ar sereno, talvez um pouco
ausente, a segunda, do também italiano Cesare da Sesto, tem agora cores
exuberantes que tornam ainda mais evidentes as suas formas generosas e é
claramente executada por alguém que teve Leonardo por referência.
“Há aqui claramente um primado do desenho, do contorno, o
que não é surpreendente”, diz Joaquim Caetano, conservador do museu, apontando
para a obra que saiu do atelier de Verrocchio e explicando que toda a pintura
italiana do século XV se baseia nesta virtude de dar uma ideia de
tridimensionalidade, a que se associa aqui a “extrema idealização da beleza da
Virgem”, comum na Florença desta época e que atinge o seu ponto mais alto com
Botticelli: “A esta imagem de grande humildade, serena, junta-se um referente
matricial de beleza que se identifica com a própria ideia do bem.” Uma ligação
que ajuda à transmissão dos ideais religiosos e que é ainda mais útil num
período de prosperidade para a cidade, em que surgem as primeiras dissensões na
Igreja no que respeita ao papel que a arte nela deve ter. “Muitos se
questionavam se esta arte que reflectia o luxo e um certo culto da antiguidade
não estaria a fazer com que as pessoas fossem mais à igreja para ver a pintura
do que para rezar à Virgem.”
Virgem com o menino e são João Batista de Cesare da Sesto |
Não é certo que a Virgem agora exposta no Museu de Arte
Antiga – um empréstimo do Museu Städel de Frankfurt em troca do S. Jerónimo de Albrecht Dürer do
MNAA que se deslocou à Alemanha para uma exposição que ainda decorre – seja de
Adrea del Verrocchio (c. 1435-1488). O mais rigoroso, garante José Alberto
Seabra Carvalho, conservador e director adjunto do museu, é atribuí-la ao
pintor, escultor e ourives e à sua oficina, uma das mais bem sucedidas da
Florença da segunda metade do século XV. A Virgem com o Menino, do Städel, terá
sido executada entre 1470-80, como quase toda a pintura de Verrocchio, que,
apesar de ser já muito activo logo no início da década de 1470, só recebeu o
estatuto de pintor em 1474.
O mestre e o discípulo
Sabe-se muito pouco da relação entre Verrocchio e o seu
discípulo mais célebre, Leonardo da Vinci, que terá trabalhado no seu atelier,
“uma verdadeira fábrica”, entre 1469 e 1478, primeiro como aprendiz, à
semelhança de artistas como Pietro Perugino ou Botticelli, e depois como colaborador
do mestre. “Verrocchio era um professor reconhecido e a sua oficina era muito
apetecível porque ele era talentoso, recebia as melhores encomendas e, por
isso, tinha muito trabalho. É natural que Leonardo o escolhesse.”
Há várias obras em que os dois terão colaborado, a mais
famosa das quais – um Baptismo de Cristo, hoje nos Uffizi, de Florença – deu
origem a uma pequena história que o pintor e arquitecto Giorgio Vasari
(1511-1574), o primeiro biógrafo dos artistas italianos da Renascença, conta no
seu Vidas, título fundador da História de Arte: Leonardo terá pintado (pelo
menos) um dos dois anjos ajoelhados e o mestre, vendo que o trabalho do aluno
era claramente superior ao seu, terá dito que não voltaria a pegar num pincel.
“Podemos dizer que as melhores obras de Verrocchio são
esculturas, mas ele e a sua oficina trabalham também em pintura e ourivesaria –
e tudo ao mesmo tempo”, continua o conservador do MNAA, sublinhando que em
todos os meios o pintor evidencia uma “enorme mestria no desenho”.
Na sua oficina, aliás, circulavam muitos dos modelos que
criara com “grande inventividade”, alguns picotados, provavelmente para serem
transpostos com mais facilidade para outros suportes por alunos e
colaboradores: “Verrocchio tem consciência de que, ao desenhar, está a criar
tipos com uma grande marca autoral. Nesta pintura, por exemplo, vê-se muito bem
na Virgem que há um modelo que se repete, que se nota noutras versões que faz
do mesmo tema – a boca pequena, delicadíssima, a fronte relativamente alta, o
pescoço alongado e as mãos que, por regra, se exibem em articulações
sofisticadas.”
Ainda que esta “marca autoral” surja na pintura, é na
escultura que ela é mais evidente. Há, aliás, nesta Virgem com o Menino “uma
clara intenção escultórica, a de expor os volumes”, explica Joaquim Caetano,
mostrando Jesus no parapeito da janela como quem coloca uma peça sobre um
plinto. É com os recursos do “designer exímio” – a expressão é de Seabra
Carvalho – e do escultor que Verrochio trabalha esta pintura: “O tratamento das
pregas no manto da Virgem, por exemplo, não se faz através de contrastes de luz
e sombra, como faria com mais naturalidade um pintor. Aqui a luz não tem uma
direcção clara, tudo é um pouco seco, duro. A janela também não é a do
Renascimento, não está muito bem perspectivada.” Isto não impediu, sublinha,
que esta temática, que representou também em mármore e terracota, fosse um
best-seller da sua oficina, “extremamente eficaz do ponto de vista da arte e da
devoção”.
Um “Leonardo” para o
rei
Trazer esta pintura da oficina de Verrocchio a Portugal e
expô-la ao lado da de Cesare da Sesto (1477-1523), uma obra que pertence à
colecção do Palácio Nacional da Ajuda mas que está no MNAA desde 1920, dá ao
visitante a oportunidade de se confrontar com duas obras que têm como elo comum
Leonardo. De um lado a elegante Virgem do seu professor – hoje um pouco
“ofuscada” por uma camada de verniz esverdeado, segundo Susana Campos e Teresa
Serra e Moura, conservadoras-restauradoras do MNAA que se encarregaram da
operação de limpeza do Cesare da Sesto –, do outro a Virgem com o Menino e S.
João Baptista Menino (c. 1510) do seu discípulo, que nela faz, segundo o
director adjunto do museu, uma citação directa da célebre Virgem dos Rochedos (obra
de Leonardo com duas versões, uma no Louvre, em Paris, e outra na National
Gallery de Londres). “Esta filiação leonardiana que o Cesare da Sesto assume
vê-se nas duas figuras infantis, que são muito parecidas com a dos Rochedos. E
são também muito parecidas entre si, distinguindo-se apenas pelo facto de Jesus
estar a levantar a mão numa bênção.”
O historiador Hugo Xavier, autor do livro Galeria de Pintura
no Real Paço da Ajuda (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013), estudou ao
pormenor a criação da colecção régia de pintura, uma iniciativa que marcou os
primeiros anos de D. Luís como monarca (subiu ao trono em 1861), projecto do
qual viria a desinteressar-se mais tarde. É neste contexto, e graças à acção do
pintor e primeiro director da galeria, Marciano da Silva, que a Virgem de
Cesare da Sesto chega a Portugal, ainda com a atribuição errada a Leonardo da
Vinci (embora houvesse já especialistas a contestá-la), assim como quatro
outras pinturas de que o Diário de Notícias de 30 de Junho de 1867 dá conta:
“Entre os quadros que trouxe o sr. Marciano figuram em primeira linha: um
admirável Leonardo da Vinci, um Ticiano, um Paris Bordone, um Moroni, um
Bellini, todos artistas da idade augusta da pintura. Estes quadros fizeram
parte da célebre galeria de Brescia, pertencente ao conde Lechi.”
Deste conjunto saído da importante colecção Lechi, explica
ao PÚBLICO Hugo Xavier, apenas a atribuição a Moroni – um retrato que se
encontra ainda na Ajuda – se confirma (Calouste Gulbenkian comprou também um
Moroni do acervo do conde, em exposição no museu de Lisboa). A autoria da
Virgem foi corrigida para Cesare da Sesto e as restantes obras continuam a
levantar dúvidas, sendo o Ticiano considerado, “muito provavelmente”, uma cópia
da época, hoje nas reservas de Arte Antiga.
Por estar atribuído a Leonardo, Virgem com o Menino e S.
João Baptista Menino foi objecto de alguma disputa entre Marciano da Silva, que
comprava para D. Luís, e algum representante de outro coleccionador
estrangeiro? “Não há qualquer indício disso”, explica Xavier, acrescentando que
quando o enviado português foi ver a colecção Lechi, depois de ter passado por
Bruxelas e Paris, ela estava já “muito desfalcada”. Só Gustav Waagen,
“homólogo” de Marciano da Silva, tinha adquirido em nome do rei da Prússia 11
Veroneses, cinco Ticianos, dois Morettos e um Tintoretto, escreve Xavier.
“Muitas das obras desta colecção dispersas pela Europa terão
sido destruídas nos bombardeamentos da Segunda Guerra Mundial”, mas outras
sobreviveram, como o Retrato de Jovem (1540-45), de Moretto, e o Retrato de
Giovanni Agostino della Torre e do Filho, Niccolò (1513-16), que fazem parte da
colecção da National Gallery de Londres.
“O que sabemos deste Cesare da Sesto que veio para Portugal
é que devia ser um dos preferidos do rei, porque esteve no quarto de cama de D.
Luís”, diz o historiador. Hoje, depois da limpeza, sem o verniz escurecido que
a cobria, a pintura exibe as suas cores sedutoras, mas sem qualquer vestígio da
técnica do sfumato em que Leonardo era exímio, acrescenta o conservador José
Alberto Seabra Carvalho: “O modelo que ele usa é Leonardo, mas sem as mesmas
ferramentas de transmissão.”