Joana Vasconcelos | A arte a seus pés

Em 15 anos, Joana Vasconcelos fez da sua arte uma verdadeira imagem de marca. Quem não reconhece os seus gigantescos sapatos feitos de tachos, os corações pulsantes de talheres de plástico, os cães de louça ou as faianças de Bordalo revestidas de crochet? A sua obra pode agora ser revista numa exposição antológica, Sem rede, no Museu Berardo, que reúne 36 peças de 1996 a 2009.


"Cama Valium"

Uma ligeira hesitação e depois num ímpeto, ei-la a mirar-se ao espelho, debaixo dos secadores. Esvoaçam-lhe os cabelos e despenteada grita um "uau" convicto e dá a vez a outro, enquanto alguém, do outro lado da sala, segue a agitada vida das gravatas de seda, insufladas por uma invisível ventania, uma colecção colorida do próprio cliente que encomendou um quadro a Joana Vasconcelos. E a artista não é de dar ponto sem nó, mesmo que nas gravatas do encomendador. Sem rede, a sua exposição antológica no Museu Berardo, convida aos sentidos, vive do tacto e do contacto com os espectadores.
Não é de admirar que logo no primeiro dia aberto ao público, um visitante mais interactivo não tenha resistido a experimentar o Sofá Aspirina, feito com centenas de blisters de comprimidos. Uma dor de cabeça, porque o estrago infringido pelo incauto traseiro implicou refazer a icónica peça do princípio do percurso da artista e que só agora foi vista de novo com outra obra não menos emblemática, Cama Valium. Feita com os famosos calmantes, com a particularidade de serem embalagens de diferentes dosagens, já que as mais fortes foram retiradas do mercado, enquanto Joana Vasconcelos procedia à sua criação. Por risco de overdose. E foi porventura para criticar o excesso do mal e da cura, a intoxicação medicamentosa e existencial em que se vive que a artista criou tal leito letal, onde se espera que a ninguém passe pela cabeça bater uma soneca.
De resto, Sem rede não é apenas para ver. Pode-se tocar na arte exposta, sentir as texturas dos tecidos e crochets, puxar os estores de Vista Interior e por espantoso que possa parecer, até mesmo comer: o beberete da inauguração foi exactamente servido numa das obras, Plastic Party. É uma exposição feita para se entrar nela, na velha guarita do Estado Novo  de spot me, como no Ponto de Encontro, carrossel com cadeiras de escritório de design , para mais uma viagem. Só na macia e cor-de-rosa interioridade de Flores do meu desejo, feita com um respeitável lote de espanadores, que alude a um útero, não houve um homem que se afoitasse a entrar, quando a obra foi apresentada pela primeira vez, na Estufa Fria, em meados dos anos 90. É o que recorda a artista. E depois da travessia do seu labiríntico Jardim do Éden, de inebriar qualquer visitante com as suas naturalmente soberbas  e esfusiantes flores de plástico, uma peça apresentada já em Londres e Paris, lá estava ela, ajeitando a derradeira obra, Una dirección, que o público já tinha embrulhado na retirada. São "baias" com tranças de cabelo artificial que organizam o público em filas e indicam a direcção da saída. E por certo ninguém sairá de Sem rede como entrou porque a arte de Joana Vasconcelos não deixa ninguém indiferente.