A EUROPA DAS CATEDRAIS | M4

INTERIOR DA CATEDRAL DE S. DENIS
A ESTÉTICA GÓTICA
DEUS É LUZ
As cidades não paravam de crescer, de se animar, de estender os seus subúrbios ao longo das estradas. Nelas, a catedral ou sé tornou-se o símbolo do poder do bispo e dos burgueses. Do bispo porque controlava espiritual, jurídica e politicamente o território episcopal; dos burgueses porque, sendo uma classe rica, participavam como o seu dinheiro na sua construção e manutenção. Todos têm interesse no desenvolvimento da sua cidade, que se reflecte no poder e na majestade da sua catedral. Assim, esta transforma-se no símbolo da cidade e é através da sua beleza e sumptuosidade que a comunidade urbana se afirma.

A sé tornou-se, por isso, o motor da religiosidade, do poder político e económico; é no seu adro que se realizam as feiras e as representações teatrais, que se faz a justiça, junto ao pelourinho, e se trocam ideias entre burgueses, estudantes, letrados e aristocratas, já que era junto à catedral que funcionavam as escolas mais importantes da época.

Para este papel da catedral muito contribuíram os bispos que as conceberam e planificaram. São conhecidos vários nomes, mas o grande ideólogo foi o abade Sugger, criador do estilo gótico, com o seu projecto para a igreja da Abadia de S. Denis, numa zona perto de Paris, em Île-de-France. Imediatamente convergiu para lá tudo o que havia de mais audacioso nos projectos dos mestres que trabalhavam nas várias cidades das redondezas.

Duas decisões foram tomadas, a primeira, foi elevar as abóbadas um terço mais do que tinha sido previsto, graças ao aperfeiçoamento dos arcobotantes; a segunda, foi substituir nas paredes do transepto a pedra pelo vidro colorido de imensas rosáceas

Assim, foi feito da catedral o reino de Deus na terra, numa unidade espiritual através da forma da planta, da verticalidade, da decoração dos pórticos, mas especialmente da luz de desmedidos vitrais onde era realçada a cor, a harmonia da composição, a elegância e a comunicabilidade das figuras. Sugger, com a sua teoria da iluminação – Deus é luz –, conseguiu a representação do divino no espaço espiritual e físico da catedral e criou uma nova ascese – meios para a catequização do homem e para a libertação do seu imaginário.

A Europa inteira adoptou estas fórmulas. Pois que, numa emulação ardente, cada cidade metia mãos à obra de reconstruir a sua catedral, querendo-a mais gloriosa, mais vasta ainda, mais luminosa do que as vizinhas. Estes monumentos eram o orgulho da cidade. O seu florescimento testemunha a prosperidade humana.

A poética da luz no pensamento religioso da época

Deus é luz. Desta luz inicial incriada e criadora participa cada criatura. Cada criatura recebe e transmite a iluminação divina de acordo com a sua capacidade, isto é, segundo o lugar que ocupa na escala dos seres. Proveniente de uma irradiação, o universo é um fluxo luminoso que desce em cascatas e a luz que emana do Ser primeiro instala no seu lugar imutável cada um dos seres criados. Mas ele une-os a todos. Laço de amor, irriga o mundo inteiro, estabelece-o na ordem e na coesão, e porque todo o objecto estabelece mais ou menos luz, esta irradiação, por uma cadeia contínua de reflexos, suscita, desde as profundidades da sombra, um movimento de reflexão, para o foco do seu irradiamento.

Luz absoluta, Deus está mais ou menos velado em cada criatura, consoante ela é mais ou menos refractária À sua iluminação; mas cada criatura o desvenda à sua medida, pois liberta, diante de quem a observar com amor, a parte da luz que tem em si. Esta acepção contém a chave da nova arte, da arte de França, de que a abacial de Sugger propõe o modelo.

Textos a partir de: George Duby, O Tempo das Catedrais, Lisboa, Editorial Estampa, 1997
Deus é luz
“A Luz, que aparece simultaneamente como o próprio Deus e como o agente da união entre a alma e Deus, deve encher inteiramente o Reino cujo campo os muros da catedral simbolicamente delimitam.”
George Duby, O Tempo das Catedrais, Lisboa, Editorial Estampa, 1997
A estética gótica
“A vista humana não sabe, a princípio, onde fixar-se: se olha os tectos, estão floridos como tecidos brilhantes; se se vira para as paredes, são uma espécie de delicioso jardim; se é ofuscada pelos jorros de luz que entram pela parede, admira a inestimável beleza do vidro e a variedade do mais precioso trabalho”
Padre Teófilo, século XII in Lionello Venturi, História da Crítica de Arte, Lisboa, Edições 70