O Antigo Regime | M6

Privilegiados e não privilegiados numa sociedade de três ordens: o Clero, a Nobreza e o Terceiro Estado nos séculos XVI, XVII e XVIII
O Poder Simbólico: nascer nobre ou camponês
O termo Antigo Regime foi definido por oposição ao período que se iniciou com a Revolução Francesa. De acordo com esta sociedade, altamente estratificada, os Homens eram encarados como elementos estanques e perenes de um determinado grupo ou ordem do qual não poderiam sair. Nos vários reinos europeus até 1789, ano da Revolução, não se olhava para a individualidade de cada um, para o mérito pessoal, para o valor de cada cidadão. Alias! O termo nem sequer existia enquanto personalidade jurídica. A sociedade de então, não concebia a existência de homens singulares, somente de corpos ou grupos de solidariedade onde se incluíam os vários seres humanos. Uns governavam, outros oravam e a esmagadora maioria da população, esfarrapada, suja e mal alimentada trabalhava de sol a sol para sustentar, manter e garantir os senhores da terra e do além. Desta lógica, excluímos a liberal Inglaterra, por ter definido uma Monarquia Constitucional, com parlamento, desde há muito.
Cada um no seu lugar. Nascer no seio de uma família nobre significava ter uma vida de luxo, opulenta e faustosa. Pertencer ao clero, onde se ia parar por vocação, forçada, ou não, representava, igualmente, uma vida tranquila e farta, quer fosse nas suas fileiras superiores ou inferiores. Aos membros do alto clero, estava garantida a participação nos principais círculos de poder; aos párocos de aldeia e, grosso modo, aos prelados de menor importância, estava reservada uma vida modesta, mas sempre com mesa abastada. O que na altura, traduzia a diferença entre sobreviver ou não, já que a maioria da população muito dificilmente, conseguia reunir o necessário para se alimentar e acordar no dia seguinte para mais uma jorna de árduo trabalho. Contrariando, muitas vezes, o resguarda e os sacrifícios que Deus exige, a maioria dos clérigos fruía uma vida afortunada e rica. Estas eram as ordens que comandavam, ao nível do imaginário e no campo do poder simbólico, os destinos das nações europeias.
No Terceiro Estado, encontravam-se todos aqueles que não possuíam nenhuma ligação a uma família nobilitada com pergaminhos distintivos, nem eram interlocutores privilegiados de Deus. Este era um grupo bastante heterogéneo composto por homens de negócio, artesãos, proprietários de terra e camponeses, cuja única ligação, era não possuírem um brasão no frontão ou na esquina de sua casa que legitimasse um laço de sangue a um passado glorioso. Tudo era definido, salvo excepções muito pontuais, desde o nascimento. Nesta sociedade, os seus elementos faziam-se valer não pelo seu mérito, mas pela sua origem social. Se se tivesse nascido no seio de uma família camponesa, o futuro reservaria, a esse indivíduo, uma vida repleta de privações e humilhações. Pelo contrário, pertencer à nobreza era sinónimo de distinção e consideração. Ainda antes de qualquer Homem ter visto os primeiros raios de luz, já tudo estava decidido: a ocupação, as tarefas, a alimentação, o vestuário, os divertimentos. Tudo, mas absolutamente tudo.
Aos indivíduos, restava cumprir as funções da sua Ordem: administrar extensas propriedades e caçar, se o destino tivesse sido generoso, ou então: semear, cavar, ceifar, podar e tratar de animais se o berço não tivesse sido bafejado pela sorte. Esta era a sociedade do Ancien Régime, uma sociedade altamente hierarquizada que determinava estilos de vida estáticos, nada permeáveis à mobilidade social.
E no topo da pirâmide, o garante máximo desta concepção organizacional, encontramos o rei, o monarca absoluto, que reunindo todos os poderes na sua mão: o legislativo, o executivo e o judicial exercia a autoridade de forma centralista e tirânica. Contudo, ele não era o culpado, limitava-se a fazer cumprir o direito divino que o tinha “mandatado” para tal. O seu poder advinha de uma entidade superior, não era legitimado pelos Homens nem se baseava na razão, por isso se diz que a natureza dessa autoridade era teocrática, ou seja, de origem celeste. Era Deus que norteava a prática do seu poder, o monarca limitava-se a satisfazer a vontade divina.
A associação do monarca absolutista à divindade ia ainda mais longe. O rei era considerado representante de Deus na terra, com atributos semidivinos, possuía praticamente uma relação de parentesco com a deidade.
Numa esclarecedora descrição de Bossuet, teólogo e pregador do absolutismo, compreende-se com exactidão toda esta concepção: “olhar o príncipe no seu gabinete. Daí provêm as ordens que põem em movimento magistrados e capitães, cidadãos e soldados, províncias e exércitos, na terra e no mar. É a imagem de Deus que, sentado no seu trono no mais alto dos céus, põe em movimento toda a natureza.[1]
Como podemos confirmar através da análise do pensamento do autor citado, o rei absoluto punha o mundo em marcha. A ele competia comandar os destinos da Nação. Era o pai tutelar de todas as ordens, o pai da Nação que alimentava a sociedade com a sua força. Nada lhe podia fazer frente ou equivaler-se. Era o sol, o combustível dos povos, a luz que todos necessitavam para crescer e evoluir, ou seja, a força centralizadora que colocava o Mundo em andamento na terra e nos mares, em todos os locais. À semelhança de Deus, era um pai omnipresente e omnipotente a quem todos deviam obediência. Militares de todas as patentes, ou melhor, hostes inteiras, burocratas do reino, oficiais de justiça, clérigos seculares e regulares, camponeses, comerciantes, artesãos, marinheiros e navegadores. Todos os Grupos, todas as Gentes, todos os Homens que compunham o universo do rei, deviam limitar-se a cumprir os seus desígnios, a obedecer à sua vontade, tal como um filho obedece a um pai ou um escravo ao seu senhor.
O guia incontestado dos povos, a verdadeira divindade no plano terreno, o motor da sociedade, sem o qual não havia luz, somente trevas. A estrela que guiava os homens no bom caminho. Mesmo quando errava, como ser humano que era, não se olhava para esse erro como um defeito da sua governação ou falta de preparação para o cargo que exercia, mas sim, como desígnio divino. Era a vontade de Deus que tinha impedido o monarca de ter sucesso, “contra a qual revoltar-se não só seria ímpio como impolítico.[2]” Deste modo, a cega obediência ao rei evitava a anarquia e toldava a contestação.
Ao longo do século XVIII, as coroas absolutas dominaram a Europa. Todos os soberanos, excepto o inglês, ostentaram coroas reais ou imperiais, sem obedecerem a uma Constituição. No entanto, Luís XIV, a personificação do sol, o expoente máximo desta ideologia, chegou mesmo a afirmar – L’ etá c’est Moi (o Estado sou EU).
Nesta frase, podemos observar, todo o ideário absolutista condensado de forma clara e precisa. Ele, como representante de Deus na terra assumia todos os poderes, sintetizava a força motriz de todo o desenvolvimento, a coragem e a glória. Todo o ânimo estava concentrado na sua pessoa. Sem ele não existia Estado. A questão era mais profunda, ele representava a personificação do próprio Estado. Ricamente vestido e adornado impunha ao seu tempo uma monarquia autoritária e hegemónica, onde para além dos raios que irradiava, só existia caos e escuridão.
[1] C. B. A. Behrens, O Ancien Régime, Lisboa, Editorial Verbo, s.d, pág. 85.
[2] Op. Cit. pág. 89.