O Palácio de Versalhes | M6

Durante o Antigo Regime, as cortes europeias fizeram-se rodear de uma extraordinária riqueza e fausto, ao nível do poder simbólico, foi a forma encontrada para ofuscar e impor a superioridade sobre os restantes.
Luís XIV que, durante mais de meio século, conseguiu identificar a realeza com uma vida de pompa e magnificência transferiu a sua corte para o Palácio de Versalhes. Ele e a sua corte, na casa real, converteram-se no maior modelo europeu de realeza que o Antigo regime conheceu. Ele e a sua casa representavam o topo do modelo mais acabado da estratificação social, muito perto do céu. Tal como Norbert Elias salienta: “o palácio de Versalhes simboliza (…) o cume de uma sociedade hierarquizada mesmo nas suas mais insignificantes manifestações”
Neste amplo espaço, era possível viver sem nunca atravessar as suas paredes para o exterior. Este palácio representava muito mais que uma casa. A ele afluíam todos os nobres e clérigos de prestígio, alguns com residência permanente. Neste local, tratavam todos os problemas da administração do reino, lá se decidia a guerra e a paz. Na casa do monarca, também eram recebidas as maiores e mais importantes companhias de teatro, bailado e ópera. As suas imensas salas, quartos, corredores e recantos permitiam a privacidade dos que nele habitavam, os saraus davam ânimo às noites e os seus luxuosos jardins permitiam o contacto com o ar livre e passeios intermináveis. Era o local perfeito para se viver luxuosa e ricamente, onde um exército de empregados servia aristocratas, clérigos, o rei e a sua família.
Quando procuramos compreender o edifício no seu conjunto, verificamos que os seus múltiplos espaços têm capacidade para alojar uma infinidade de pessoas. Com toda a certeza, seriam milhares de pessoas a residir em Versalhes, um relatório de 1744, refere um número de dez mil pessoas, incluindo empregados. Nele caberia a população de uma cidade, de acordo com a magistral obra A Sociedade de Corte:
“ A população inteira de uma cidade caberia entre as suas paredes. Todavia, estes milhares de pessoas não o ocupam como se ocupa uma cidade. As unidades sociais que aí residiam não são famílias cujas necessidades e limites modelam unidades espaciais separadas umas das outras. Este conjunto de edifícios é, em primeiro lugar, a casa do rei e a residência, pelo menos esporádica da sociedade de corte tomada no seu todo. Uma parte desta sociedade dispunha de um apartamento permanente na casa do rei. Luís XIV gostava que os seus nobres vivessem sob o seu tecto, gostava que lhe pedissem alojamento em Versalhes. De acordo com o desejo do rei, era sobretudo a alta nobreza que residia permanentemente em Versalhes (…) «Quase nunca saio da corte – diz Saint-Simon – e a senhora de Saint-Simon também não.» Ora é de notar que Saint-Simon não desempenhava nenhum cargo oficial que o ligasse estreitamente à corte.[2]

O Papel da Burguesia e o Mercantilismo

Nas principais esferas de poder, no Palácio Real, onde gravitavam os destinos das nações e do Mundo, não havia lugar para a burguesia. No restrito círculo da Corte participavam aqueles que tinham laços de sangue com a tradição, caso o dinheiro fosse muito e fizesse aproximar um elemento da burguesia a este grupo, a sua presença até poderia ser tolerada, no entanto, o estigma social permaneceria inalterável e a ideia de não pertencer ao Grupo continuaria a pesar sobre si. Esse indivíduo nunca seria um nobre de linhagem, nunca seria reconhecido como um membro de pleno direito no seio dos privilegiados. Noutras funções, a segregação era igualmente visível, no exército por exemplo, as mais altas patentes estavam reservadas àqueles que tinham sangue azul. Note-se que esta questão deve ser aqui enquadrada no plano teórico, pois muitos burgueses já se haviam aproximado do poder, quase sempre apoiados pelo seu capital ou por um casamento interessante, contudo, encontravam-se escalonados num grau inferior da hierarquia social: precisavam desesperadamente de uma Constituição que os reconhecesse como iguais, só esse documento acabaria com a descriminação de que eram alvo desde há séculos.
Perante o desenvolvimento técnico que, durante esta cronologia se impos de forma determinante na vida quotidiana da Europa e face à expansão do capitalismo moderno e do mercantilismo, sistema económico que se basea na acumulação de metais preciosos nos cofres do Estado, a acção da burguesia era cada vez mais decisiva para o sucesso das nações europeias. De acordo com a lógica mercantilista, os estados deveriam desenvolver uma atitude proteccionista, para tal, procurava-se que a curva das importações fosse muito diminuta e a curva das exportações elevada. Assim, os estados conservariam uma balança comercial positiva. Os monopólios, por possibilitarem a acumulação de grandes fortunas, também eram incentivados pelas monarquias absolutas.

Tradição e Inovação

Os Homens dos séculos XVII e XVIII conheceram um profundo dilema entre tradição e inovação. De um lado, do lado da tradição, a sociedade de corte que colocava cada Homem no seu lugar de acordo com o seu nascimento, não permitindo a ascensão social dos seus membros. Do outro lado, do lado da inovação: o tecnicismo, a sabedoria e a capacidade de fazer dinheiro.
Um mundo dividido entre nobres e burgueses. Os primeiros, muitas vezes falidos, insistiam em ocupar os principais lugares na administração, encontravam-se no centro do poder, ao lado do rei, usando a tradição e o nome para justificar o lugar que ocupavam na sociedade. Os segundos, eram homens de negócios que tinham singrado nos seus países, apoiando-se na virtude do trabalho, mas aos quais, estava vedada a participação nas principais esferas de poder, lazer e cultura, pois não eram filhos do apertado círculo da aristocracia. Estamos, claramente, na presença de um mundo desfasado e desequilibrado, um mundo que insistia em manter-se, não obstante, as novas e emergentes mutações. Esta era a situação da burguesia, endinheirada pelo comércio, quando comparada à da fidalguia.

Uma Sociedade de desequilíbrios

Noutros domínios, a situação de desequilíbrio social era bem maior, quando comparamos a vida da raia miúda à da nobreza ou até mesmo à da burguesia, aqui, verificamos a existência de gigantescas discrepâncias que pautavam a vida destes grupos. Entre privilegiados e não privilegiados, pois era disso que se tratava: uns tinham todos os direitos, prerrogativas e apanágios, outros, a esmagadora maioria da população não possuía nada que pudesse chamar seu. Mundos diferentes, verdadeiramente diferentes, que coabitavam sem interacção horizontal. Voltamos a repetir – cada um no seu lugar, cada um no seu Grupo. Esta era a matriz da sociedade de corte.
Enquanto o povo nas cidades, nas vilas e nas aldeias vivia à míngua, alimentando-se com pão de má qualidade e toucinho, raras não eram as vezes em que as ervas daninhas também entravam nas malgas dos mais pobres. Nos palácios e nos solares a opulência era gigantesca, os ricos tinham sempre uma mesa recheada e farta, nela abundavam: carne, peixes e marisco de todas as qualidades. Noutros aspectos as desigualdades eram igualmente visíveis. Nas casas dos camponeses passava-se frio nos difíceis Invernos, nas casas dos senhores vivia-se confortavelmente. O povo andava maltrapilho, vestindo-se com aquilo que cada um conseguia tecer, os ricos envergavam requintados veludos e importavam sedas da Índia e pérolas da China. A populaça contentava-se com romarias e procissões ocasionais, os nobilitados assistiam a óperas em esplendorosos teatros.
Ao nível material, o homem comum vivia de forma muito idêntica desde tempos ancestrais, alimentava-se mal, tombando por tudo e por nada. Bastava um Inverno mais rigoroso, um mau ano de colheitas, um ano de chuvas rigorosas que fizesse apodrecer a semente na terra e as crises de mortande sucediam-se de forma catastrófica. Esta era a realidade que pautava toda a Europa, a grande maioria da população continuava dependente daquilo que a terra dava, mal se conseguia alimentar. Por exemplo, em França, mas noutros locais da Europa os números andariam muito perto, calcula-se que 85% da população vivesse nos campos dedicando-se a uma economia praticamente de subsistência, nas grandes propriedades dos senhores terratenentes. Neste país, “em 1789, 22 milhões ou mais de indivíduos, num total calculado de 26 milhões” dedicava-se ao sector primário. Nos domínios senhoriais, muitos deles herdados da Idade Média, os camponeses tinham um quotidiano marcado por privações, nele imperava a morte, a falta de higiene, a promiscuidade, os ratos, as pulgas e, claro está, a tradicional peste. De facto, “para a grande maioria, a vida era uma luta contínua, muitas vezes perdida, para arrancar do solo magro sustento.”

A Revolução Francesa

Este foi sem dúvida o pano de fundo que deu origem à Revolução Francesa, duas realidades distintas: a falta de reconhecimento, ou melhor, a falta de estatuto da burguesia endinheirada pelo comércio e pela indústria e a miséria que grassava nos meios mais populares e que colocava o homem, raras não eram as vezes, abaixo do nível mínimo de subsistência. Duas situações criadas pela mentalidade do Antigo Regime, voltamos a reiterar, embora diferenciadas, mas que, de igual modo, concorreram para pôr em choque toda a organização social tecida desde os tempos medievais. Mais tarde ou mais cedo, seria de esperar que o dinheiro detido pelos sectores mais pomposos do Terceiro Estado quisesse ocupar, na sociedade, um lugar proporcional à sua capacidade de aquisição. Também não seria de estranhar que o povo, embora sem preparação intelectual para promover grandes rupturas, se revoltasse, sobretudo em anos de grande carência e alta de preços, contra o seu estilo de vida: “analfabetos e embrutecidos pela miséria, vítimas de receios e superstições irracionais, eram capazes de pôr em movimento distritos inteiros contra os bodes expiatórios do momento, se não existisse o braço forte da autoridade constituíam ameaça potencial para a lei, ordem e propriedade.”Bastaria um pequeno rastilho, e os estilhaços da Revolução rebentariam por todo o lado, como se veio a verificar durante a Revolução Francesa, onde, e de acordo com Fátima Bonifácio: o campesinato assumiu um papel de relevo, verdadeiramente revolucionário. Alterando para sempre o rumo da História.